Prestadoras de inestimáveis serviços ambientais,
elas sucumbem a agrotóxicos, monocultura, manejo inadequado. Como viverá a
humanidade se desaparecerem?
Por Inês Castilho, com a colaboração de Taís
González
Em sua recente participação no III Encontro
Internacional de Agroecologia, em Botucatu (SP), a cientista indiana Vandana Shiva
lembrou a tragédia que a levou a estudar o impacto da indústria química na
agricultura: o vazamento de 42 toneladas de um gás letal na fábrica de
pesticidas da Union Carbide em Bophal, na Índia, em 1984, causando a morte de
três mil pessoas e sequelas permanentes em mais de 100 mil. O presidente da
empresa norte-americana, Warren Anderson, teria fugido do país em avião do governo, dias depois, abandonando
na fábrica toneladas de produtos químicos perigosos, entre eles DDT – que estão
lá até hoje.

Parece assustador – e é mesmo. A cultura de
amêndoas, totalmente dependente da polinização das abelhas, é exemplo da
dimensão do desastre: são hoje necessárias 60% das colmeias remanescentes nos
Estados Unidos para polinizar as plantações do estado da Califórnia,
responsáveis pela produção de mais de 80% das amêndoas no mundo. Nos últimos
seis anos, a CCD dizimou cerca de 10 milhões de colmeias do país. A taxa de
mortalidade das colônias é de 30% ao ano: das 6 milhões de abelhas existentes
em 1947, restam hoje não mais que 2,5 milhões.
Desastre global.
O declínio da população de abelhas foi notado em
2006, nos EUA. Quando a Europa acordou para o problema, em 2007, a CCD já
atingia Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal. Ouviam-se notícias sobre o
desastre no Canadá, Austrália, Brasil, e até mesmo o desaparecimento de 10
milhões de abelhas em Taiwan. “Sim, é um fenômeno global”, confirma Carlo Polidori, pesquisador do Museu Nacional de
Ciências Naturais de Madri, na Espanha, onde as perdas chegam a 90%, em algumas
regiões. As últimas notícias são de julho, na província canadense de Ontário,
onde se perderam 37 milhões de insetos.
No Chile,
onde até o ano passado a versão oficial era de que não havia evidências da
existência da CCD, apicultores da região de BioBio registraram, em maio, a
perda de milhões de abelhas. Como no Brasil, as chamadas externalidades
negativas do modelo de exportação agroindustrial atingem em cheio o pequeno
criador.
No Brasil
Registros sobre mortalidade súbita de abelhas
encontram-se no país desde 2007 – no Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Minas Gerais, São Paulo. Todos ligados à exposição de pesticidas nas cercanias
de áreas de monocultura – de tabaco, soja, cana, milho, laranja. “Os laranjais,
que já foram importante fonte de néctar para a produção de mel, são hoje
perigosos, dada a quantidade de agrotóxicos usada para combater doenças como o greening”,
afirma o geneticista David De Jong, doutor pela Universidade de Cornell (EUA) e
professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (SP).
Em Santa Catarina, em 2011, morreram por causas
desconhecidas um terço das 300 mil colmeias existentes no estado. “Quem sente
mais são as 30 mil famílias que dependem da produção de mel. Sua perda foi
estimada em 6 mil toneladas”, afirma o presidente da Federação dos Apicultores
e Meliponicultores do Estado, Nésio Fernandes de Medeiros. Na região de
Dourados (MS), desapareceram no início deste ano cerca de 3,5 milhões de
abelhas, produtoras de uma tonelada anual de mel. “Há forte suspeita de que foi
provocada pela aplicação de um inseticida da classe dos neonicotinoides em um
canavial”, considera Osmar Malaspina, professor da Unesp de Rio Claro (SP).
Não surpreende, assim, que nos últimos dois anos o
Brasil tenha caído da 5a para a 10a posição no ranking mundial de exportadores
de mel. “Menosprezamos o serviço ecológico que as abelhas nos prestam”,
observa Afonso Inácio Orth, professor da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Já em 2011 se verificava a falta de abelhas para polinizar maçãs
naquele estado. O mesmo ocorre com o pepino, o melão e a melancia. Por
polinização insuficiente, além de nascerem frutos com formato e sabor
alterados, tem havido perda de produção de laranja, algodão, soja, abacate,
café. “Através de experiências controladas verificamos que, onde colocamos mais
abelhas, aumenta a produção. Na cultura de maracujá estão tendo de polinizar
com a mão, por falta de abelhas”, informa De Jong.
Causas.
As causas propostas são diversas: inseticidas e
fungicidas, déficit nutricional associado à carência de flora natural, mudanças
climáticas, manejo intensivo das colmeias, baixa variabilidade genética, vírus,
fungos, bactérias e ácaros – juntas ou separadamente. Até a emissão
eletromagnética de celulares já foi investigada, sem resultados conclusivos.
Mas o principal fator do desastre, concordam estudiosos, é a classe de
agroquímicos denominada neonicotinoides: clotidianidina e imidacloprida,
fabricados pela Bayer, e tiametoxan, da Syngenta – neurotoxinas que atingem o
sistema nervoso dos insetos, prejudicando olfato e memória.
“Os pesticidas são causa de perdas importantes, com
certeza”, afirma David De Jong“. Temos situações de toxicidade aguda, em que as
abelhas morrem de uma vez, logo após a aplicação do agrotóxico. Mas há outras
em que doses subletais podem fazê-las perder o rumo e não voltar ao ninho.
Doses baixas de inseticidas também enfraquecem o sistema imunológico da abelha.
O fato é que, com os novos inseticidas do grupo dos neonicotinoides, estamos
definitivamente perdendo muitas abelhas Apis mellifera e espécies de abelhas
nativas”, adverte o pesquisador.
A avaliação confirma pesquisa realizada na
Universidade de Stirling, no Reino Unido, pela equipe do professor David
Goulson. O estudo comprova que os neonicotinoides, associados a parasitas e à
destruição de habitats ricos em flores que servem de alimento às abelhas, são
as principais razões para a perda das colônias. “Abelhas mal nutridas parecem
ser mais suscetíveis a patógenos, parasitas e outros estressores, inclusive
toxinas”, confirma o relatório
de 2012 do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA). De fato, boa nutrição é
essencial para as abelhas: o avanço das monoculturas tem para elas um efeito
devastador.
O presidente da Confederação Brasileira de
Apicultores (CBA) e da câmara setorial do mel em Brasília, José Cunha, revela que “esses agrotóxicos são sistêmicos. A planta se
desenvolve e o produto tóxico vai para seiva, pólen, néctar, permanecendo no
solo durante anos. Mesmo na rotação de culturas continua presente, atingindo o
lençol freático. Os polinizadores estão pagando um preço muito alto, é um
passivo ambiental incalculável”. Para Suso Asorey, secretário da Associação de Apicultores
Galegos (AGA), “a colocação no mercado destes pesticidas
neurotóxicos sistêmicos coincide com perdas de até 40% das colmeias.”
Estudo da Universidade de Maryland e do USDA chega a
resultados ainda mais graves. Ao contaminar o pólen, misturas de pesticidas e
fungicidas, algumas de até 21 tipos, levam as abelhas a perder a resistência ao
parasita Nosema ceranae, relacionado à CCD. “A questão é mais complexa do que
fomos levados a crer”, afirma Dennis van Engelsdorp, responsável pela pesquisa.
“O fato de não ser um só produto significa que a solução não está em proibir
apenas um tipo de agroquímico, mas que é necessário rever as práticas de
pulverização agrícola”, diz ele. O Greenpeace lançou em abril o relatório Bees in Declive, no qual afirma ser crucial eliminar o uso dos
agroquímicos que afetam as abelhas.
No Chile, os apicultores relacionam a mortandade
dos insetos à aplicação de inseticidas já proibidos em outros países, mas que
lá continuam legais – e também ao uso, como alimento das abelhas, de frutose e
vitaminizadores feitos com milho transgênico.
Proibição.
O que dizer do Brasil, campeão mundial no consumo
de agrotóxicos, com mais de um milhão de toneladas anuais – sem contar o que é
contrabandeado? Sob forte pressão do agronegócio e da indústria química, o Ibama e o Ministério da Agricultura (Mapa) proibiram o uso de
agrotóxicos contendo fipronil (um pirazol) e três neonicotinoides,
imidacloprido, clotianidina e tiametoxam, apenas durante o período de floração
das culturas.
E só depois da interdição do uso dos
neonicotinoides na Itália, França, Alemanha e Eslovênia, e de muito hesitar, é
que a Comissão Europeia resolveu não ceder ao lobby da indústria e, também em
abril, restringir o uso desses agroquímicos por dois anos, em todo o
continente. A guerra pela salvação das abelhas está, portanto, bem longe de
terminar.
Sociedade de abelhas.
Existem cerca de 20 mil espécies de abelhas, entre
elas as melíferas, das quais cerca de 15% são insetos sociais, com forte
sentido coletivo, que vivem em colônias em torno da rainha. Há as guardiãs do
ninho, as que se especializam em cuidar dos ovos e filhotes, e os que se
encarregam de trazer alimentos – néctar e pólen – para a produção de mel.
Cada indivíduo é um prodígio da engenharia
biológica: está equipado com sensores de temperatura, dióxido de carbono e
oxigênio. Seu corpo, carregado de eletricidade estática, atrai grãos de pólen
que elas levam de uma flor a outra, fertilizando-as. O fenômeno tem dimensões
extraordinárias, quando examinamos o trabalho coletivo. Em um único dia, uma
colmeia pode fertilizar milhões de flores, numa área correspondente a 700
hectares, equivalente a 350 campos de futebol.
Amor incondicional.
Mel, pólen, própolis, geleia real são produtos do
trabalho da abelha melífera que nos servem de alimento e medicina. O veneno,
embora possa ser mortal, é também curativo. Na Coréia do Sul, por exemplo, os
insetos são colocados diretamente no corpo, nos pontos de acupuntura, em
tratamentos para artrite, reumatismo e esclerose múltipla.
Para o xamanismo, cada espécie tem um espírito
grupal, e esses espíritos animais integram a consciência coletiva de todas
espécies, inclusive a nossa. A abelhas possuem um sofisticado sistema de
comunicação, e sua vida é inteiramente identificada com o coletivo. Seriam
guias da humanidade na comunicação, organização e fortalecimento das
comunidades. Para o espiritismo, são exemplo de desapego e amor incondicional.
Um blog espírita português propõe fazer “um zumbido global
gigante” para banir os agrotóxicos da Europa, assinando uma petição.
“As abelhas são seres cuja energia primordial é o
amor e, por isso, completamente isentas de medo. Tudo o que produzem é fruto
dessa energia … O mel é algo que poderíamos chamar de ‘amor líquido’ e seu uso
pelos seres humanos deveria ser feito em profunda reverência”, afirmam os
adeptos da Comunidade Figueira, do líder espiritual Trigueirinho, em Minas
Gerais.
Habitantes da Terra há mais de 60 milhões de anos,
as abelhas são um dos sistemas mais importantes de suporte à vida, e revelam a
íntima interdependência entre os reinos animal, vegetal e humano. Citação
atribuída a Einstein que circula na internet sugere que, se elas desaparecessem
hoje do planeta, a humanidade só sobreviveria por mais quatro anos. Não por acaso,
sua morte é conhecida nos EUA como Armagedon das abelhas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário